Cazaquistão Depois do Levante

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Relatos de Testemunhas Oculares de Almaty e Análise de Anarquistas da Rússia

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Continuando nossa cobertura da revolta da semana passada no Cazaquistão, traduzimos uma série de perspectivas sobre a situação de várias fontes anarquistas russas e entrevistamos duas anarquistas de Almaty, a maior cidade do Cazaquistão e o lugar onde os combates se tornaram mais intensos.

Este texto também inclui fotografias inéditas tiradas por nossos contatos em Almaty.

6 de janeiro: Uma vista de Almaty. O fotógrafo: “Um nevoeiro sombrio paira sobre as fogueiras; agora tudo parece inverno nuclear.”

As seguintes fontes devem servir para desmascarar quaisquer deturpações fáceis da revolta das autoridades no Cazaquistão, Rússia ou Estados Unidos – ou seus apoiadores equivocados.

Para aqueles que espalham teorias da conspiração sobre os Estados Unidos tentarem encenar uma “revolução colorida” no Cazaquistão, devemos salientar que os protestos começaram em resposta ao cancelamento do governo de seu subsídio ao gás, que é produzido sob um lucrativo monopólio estatal no Cazaquistão. Aqueles que defendem os governos do Cazaquistão e da Rússia estão defendendo as forças repressivas que estão impondo medidas de austeridade neoliberal aos trabalhadores explorados em uma economia baseada no extrativismo. A posição respeitável para todas as pessoas que genuinamente se opõem ao capitalismo é ao lado dos trabalhadores comuns e outros rebeldes que enfrentam a classe dominante, não apoiando os governos que afirmam representar os manifestantes enquanto os matam e os aprisionam.

Isso não quer dizer que os confrontos no Cazaquistão representem uma luta anticapitalista unificada, ou mesmo um movimento trabalhista. Os relatos mais confiáveis da composição dos protestos reconhecem que houve uma ampla gama de diferentes participantes utilizando diferentes táticas para perseguir diferentes agendas. É claro que, se simpatizarmos com os trabalhadores e trabalhadoras que protestam contra o aumento do custo de vida, também entendemos por que os desempregados e marginalizados podem se envolver em saques.

Uma crise como a revolta no Cazaquistão expõe todas as falhas dentro de uma sociedade. Todo conflito preexistente é levado a um ponto de ruptura: tensões étnicas e religiosas, rivalidades entre a elite dominante, disputas geopolíticas por influência e poder. Vimos isso em menor grau na França durante o movimento dos Coletes Amarelos e nos Estados Unidos durante a Revolta por George Floyd e suas consequências, embora essas crises não tenham chegado ao levante no Cazaquistão, onde, devido ao poder autoritário inerente à estrutura, qualquer luta é imediatamente uma aposta de tudo ou nada.

Se for verdade, como argumentamos, que manifestantes no Cazaquistão estavam se opondo às mesmas forças que o resto de nós enfrenta em todo o mundo, então a repressão violenta desses protestos pelos soldados dos exércitos de seis nações coloca questões que todos devemos encarar. Parece que essas explosões estão se tornando praticamente inevitáveis ​​à medida que catástrofes econômicas, políticas e ecológicas atingem uma após a outra em todo o mundo. Como nos preparamos com antecedência, para maximizar a probabilidade de que essas rupturas sejam bem-sucedidas, apesar de todas as forças que estão colocadas contra nós? Em momentos de potencial revolucionário, como podemos propor questões transformadoras às demais pessoas que compõem esta sociedade conosco, focando as linhas de conflito ao longo dos eixos mais criadores e libertadores, mesmo quando competimos com uma variedade de facções que visam centralizar suas próprias ideologias e interesses? Como evitamos tanto as teorias da conspiração quanto a manipulação, tanto o derrotismo e quanto a derrota?

No panorama a seguir, composto em colaboração com anarquistas russos, apresentamos a análise do levante no Cazaquistão, país ex-membro da antiga União Soviética, em seguida, compartilhamos uma entrevista que realizamos com anarquistas em Almaty assim que o acesso à internet foi restabelecido após a repressão.

5 de janeiro em Almaty; uma fotografia tirada por Zhanabergen Talgat.


A Prisão das Nações

A partir de 1º de janeiro, o que começou como um único protesto contra o aumento do custo de vida se transformou em uma revolta nacional em grande escala que, por enquanto, foi brutalmente reprimida por uma combinação de força militar doméstica e estrangeira.

A princípio, os manifestantes pediram a renúncia do governo, a redução do preço dos combustíveis e a remoção do ex-presidente Nursultan Nazarbayev, o cardeal cinza do Cazaquistão, do comando do Conselho de Segurança Nacional. O slogan de todo o país para esses dias era “Shal ket!” — “Vovô, vá embora!” À medida que os protestos ganharam força, as pessoas rapidamente chegaram ao ponto de não querer concordar com nada menos do que uma mudança completa no governo, incluindo a deposição do atual presidente Kassym-Jomart Tokayev.

O regime tentou reprimir os protestos. No entanto, os manifestantes conseguiram apreender armas da polícia e revidar, saqueando lojas e incendiando ou ocupando prédios municipais. O presidente Tokaev declarou estado de emergência e enviou militares contra os manifestantes com ordens de atirar abertamente em quem ousasse resistir. Ao mesmo tempo, Tokaev pediu oficialmente à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO, composta pela Rússia e vários países vizinhos) apoio para recuperar o controle sobre o país.

De acordo com o Ministério do Interior do Cazaquistão, cerca de 8000 pessoas foram presas durante as manifestações e pelo menos 164 pessoas foram mortas; desde então, números muito mais elevados têm circulado. Alguns blogueiros proeminentes e líderes sindicais teriam desaparecido. A internet ficou desligada por dias. Pessoas foram baleadas nas praças e na rua por franco-atiradores e outros soldados.

A repressão militar da revolta, incluindo a intervenção do CSTO, desempenhou um papel fundamental no resultado. Em 10 de janeiro, relatos da mídia e testemunhos de pessoas no Cazaquistão mostram que os combates pararam em Almaty e que as manifestações de massa cessaram em outras cidades.

Aqui está a análise que o Anarchist Fighter, uma plataforma anarquista que acompanha a Rússia, publicou em seu canal Telegram channel:

1) 1) Intervenção do CSTO. Todas as fontes mais ou menos sensatas entre os cazaques percebem isso como uma intervenção e uma tentativa de impor um “Big Brother” em sua soberania. Cada hora da presença dessas forças no país multiplica a aversão e a raiva;

2) O regime autoritário não desapareceu. O presidente Tokayev concentrou mais poder em suas mãos, convidou militares estrangeiros, ordenou que suas tropas “atirem sem avisar”… Mas os cazaques não estão acostumados com a brutalidade do governo. Isso não os detém, e a insatisfação com o governo não vai embora.

3) A crise econômica não cessará sem reformas fundamentais para a justiça social. O uso da força é essencialmente apenas um adiamento dos aumentos de preços. Nenhuma medida para superar a pobreza e reduzir a desigualdade na sociedade é oferecida pelas autoridades. Consequentemente, o descontentamento que eles criaram também não diminuirá.

No século 21, o sistema dominante só é mantido por esforços cada vez maiores de força bruta.


“Wahhabis, Terroristas, Manifestantes” – Desinformação sobre a Revolta

De acordo com o podcast Trends of order and chaos, da rede avtonom.org,

As autoridades cazaques estão se esforçando muito para salvar as aparências e construir sua versão da realidade. A operação punitiva é chamada de “contra-terrorista”, como se “terrorista” fosse qualquer pessoa que se oponha às autoridades por meios violentos. Os rebeldes, respectivamente, são “militantes e bandidos e devem ser mortos”, e a culpa do levante é supostamente da “mídia livre e figuras estrangeiras”, que é literalmente o que Tokayev disse. Estamos testemunhando o desenvolvimento da propaganda militarizada ao vivo. A mentira de que preto é branco e guerra é paz, é sentimentalismo, e quem não discorda, vai pro paredão. Afinal, ninguém sentirá pena dos “terroristas”, este é um mantra que os ditadores pós-soviéticos aprenderam bem.

Desde o início dos combates, tanto a mídia cazaque quanto a estrangeira fizeram alegações sobre as identidades dos manifestantes. As definições variavam de “manifestantes”, “jovens agressivos” e “saqueadores” até “esquadrões nacionalistas”, “20.000 bandidos atacando Almaty” e “terroristas islâmicos”. É verdade que vários grupos e facções participaram do levante. Mas isso não é um problema em si – uma sociedade inteira foi representada na revolta, com todas as suas diferenças e contradições. É seguro supor que diferentes pessoas participaram de diferentes ações contra o regime, incluindo lutas e saques.

Do Anarchist Fighter:

O jornalista Maksim Kurnikov disse algumas coisas muito interessantes na transmissão matinal de Ekho Moskvy. Ele observou que o esquema de “pegar armas das lojas de armas e depois atacar as forças de segurança” não é novo no Cazaquistão.

Exatamente a mesma coisa aconteceu na cidade de Aktobe em junho de 2016: várias dezenas de jovens, divididos em grupos, pegaram armas de duas lojas, apreenderam veículos e atacaram uma parte da Guarda Nacional, onde foram derrotados. As autoridades do Cazaquistão estão muito confusas sobre o caso: ainda não está muito claro qual é a base para suas alegações de uma “conexão islâmica”.

Kurnikov também falou de guardas paramilitares em refinarias de petróleo ilegais no oeste do Cazaquistão, formados por aldeões locais, depreciativamente chamados de “mambets” (agricultores coletivos) pelos moradores do Cazaquistão. Esses grupos também se envolveram em confrontos armados com policiais.

O que tudo isso nos diz? É claro que as palavras do presidente Tokayev sobre “grupos terroristas cuidadosamente treinados no exterior” são pura propaganda e provavelmente uma mentira grosseira. Que células armadas capazes de apreender instituições de segurança e arsenais de repente se materializaram de uma multidão heterogênea também parece improvável. Dito isto, não temos evidências de envolvimento islâmico ou nacionalista nos eventos de Almaty. No entanto, como podemos ver, existem, em princípio, grupos organizados capazes de resistência armada ativa na sociedade do Cazaquistão. É provável que as pessoas que se envolveram em confronto direto com as forças de segurança fossem em parte representantes de tais grupos e em parte manifestantes auto-organizados espontâneos. Há uma analogia com o Maidan de 2014 (ou seja, os protestos em Kiev]), onde a defesa foi organizada tanto de forma espontânea pela multidão quanto com a participação de grupos organizados radicais que se juntaram.”

Afirmações sobre fundamentalistas islâmicos participando dos eventos podem ser verdadeiras até certo ponto. Mas também é certo que as autoridades farão uso de qualquer informação sobre eles para desacreditar todos os outros grupos, identidades e participantes envolvidos no levante. O desespero econômico e a perseguição social e política muitas vezes levam as pessoas ao fundamentalismo, bem como a outras formas de radicalismo.

Segundo Anarchist Fighter:

“A questão sobre o real equilíbrio de forças entre os atores não estatais dos eventos ainda é urgente:

O jornalista da oposição Lukpan Akhmedyarov, da estação de rádio Ekho Moskvy, expressou confiança de que o ataque armado às autoridades em Almaty foi obra do povo de Nazarbayev. Os argumentos para essa confiança não são claros.

Vale ressaltar que Akhmedyarov notou em sua terra natal, Uralsk, na praça ao lado dos manifestantes, um grupo de várias dezenas de pessoas organizadas pedindo um ataque ao Akimat. Um pequeno grupo de “instigadores vestidos de forma idêntica” também foi relatado em Kostanai.

O que é isso? Alguma força rebelde organizada sombria, grupos criminosos ou realmente provocadores dos serviços do Estado? Ou talvez uma narrativa “não violenta”, buscando rotular imediatamente os apoiadores da ação direta como tal? Não há respostas.

Uma coisa é clara: dividir os manifestantes em “pacíficos” e “terroristas” é uma distorção da realidade. Mesmo antes dos acontecimentos em Almaty, havia clipes do mesmo Uralsk, onde os manifestantes estavam bravamente libertando os detidos da polícia.

Vamos nos permitir um truísmo: sim, um protesto radical “violento” não garante o sucesso de forma alguma, nem é imune a provocações. Mas um protesto puramente “não violento” em nossa realidade autoritária está simplesmente condenado de antemão. “Vocês foram ouvidos, vamos resolver isso e colocar o mais violento de vocês na cadeia” – essa é sempre a resposta das potências que estão na Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão…

Os vários rumores sobre conflitos internos dentro da estrutura de poder no Cazaquistão e as especulações sobre esquemas geopolíticos em jogo no levante podem ser verdade. Mas elevar esses rumores e especulações à posição central na narrativa sobre o que está acontecendo no Cazaquistão é uma escolha política: é uma decisão de negar a ação das inúmeras pessoas comuns que participaram do levante por suas próprias razões. Como todas as teorias da conspiração, isso pressupõe que as únicas pessoas que têm alguma agência na situação são os obscuros atores do poder global; também serve para distrair as pessoas das coisas óbvias que todos sabem que estão acontecendo, como a elite política do Cazaquistão lucrando com a experiência de todos os outros.

Rumores e especulações servem para influenciar os eventos e as formas como os outros os entendem e se envolvem com eles. Verdade ou não, cada uma dessas intervenções serve para focar a atenção em determinadas figuras, para difundir um certo conjunto de suposições sobre como o mundo funciona. Se essas teorias da conspiração lançarem dúvidas sobre os participantes do levante o suficiente para distrair as pessoas de apoiarem os manifestantes que estão se defendendo contra a exploração econômica e a dominação política, então elas terão sucesso em seu propósito de manter todo mundo em todos os países dependentes das elites políticas.

Um trono após o saque da residência do presidente em Almaty.


O próprio Tokayev não hesitou em propor as histórias mais bizarras, alegando que os terroristas internacionais que supostamente lideraram a revolta não podem ser identificados porque seus corpos foram roubados dos necrotérios. De acordo com Anarchist Fighter,

Acontece que os terroristas não podem ser mostrados ao público, mesmo que estejam mortos. Seus camaradas de armas sequestraram os mortos direto dos necrotérios!

E o principal é que as autoridades do Cazaquistão, sem vergonha, afirmam abertamente que os manifestantes radicais estavam vestidos como policiais e soldados (!!!) Agora, qualquer atrocidade dos repressores pode ser atribuída aos próprios revolucionários. Talvez os manifestantes tenham sido baleados por aqueles homens “disfarçados”? E se agora crianças e jornalistas foram baleados por homens de uniforme e distintivos — então você já sabe: é claro que foram os “manifestantes” disfarçados e não os brutais executores das forças especiais de Tokayev.

Além da questão de quem participou do levante, é importante perguntar quem se beneficia com sua repressão. Como disse um comentário,

Putin não é um nacionalista, mas um fiador. Ele garante a segurança da elite pós-soviética e a segurança de sua propriedade. Ele costumava garantir isso apenas na Federação Russa, mas agora parece que ele garante isso também no Cazaquistão. Afinal, há capital russo lá também.

Veja a lista da Forbes do Cazaquistão. Os verdadeiros beneficiários da operação de paz estão listados lá. A lista, aliás, é curiosamente internacional. As duas primeiras linhas são ocupadas pelos cazaques coreanos do de Kim. A primeira é a maior acionista da KAZ Minerals, uma “empresa britânica de cobre”, como descreve a Wikipedia. Em 2021, sua fortuna aumentou em US$ 600 milhões. O segundo Kim, juntamente com Baring Vostok, é dono de um dos principais bancos do Cazaquistão, o Kaspi Bank, que também é negociado em Londres e tem apresentado um crescimento impressionante, apesar da pandemia. Em terceiro lugar, fiquei surpreso ao encontrar um cidadão de Georgia Lomatdze, que também é coproprietário do Kaspi Bank e seu gerente.

Depois vem um certo Bulat Utemuratov, que no governo de Nazarbayev dos anos 90 se especializou em comércio exterior. Ele é dono do ForteBank, cujo lucro líquido para 2020 “atingiu 53,2 bilhões de tenge” (US$ 121 milhões), bem como as principais participações nas principais operadoras de telefonia móvel, 65% da mineradora RG Gold e vários outros ativos, incluindo uma franquia Burger King e “hotéis Ritz-Carlton em Nur-Sultan, Viena e Moscou”…

O quinto e sexto lugares são compartilhados pela filha e genro de Nazarbayev. Seu genro, Timur Kulibayev, possui “o controle acionário da Steppe Capital Pte Ltd de Cingapura”, que possui a “holandesa” KazStroyService Infrastructure BV e a Asset Minerals Holdings (Caspi Neft JSC, 50% da Kazazot JSC).

Dinara Kulibayeva, filha de Nazarbayev, junto com seu marido, é proprietária do Halyk Bank of Kazakhstan – a “capitalização de mercado do banco atingiu £ 3,1 bilhões (US$ 4,3 bilhões)”. Em sétimo lugar está um especulador financeiro russo e fundador da “empresa americana de investimentos” Freedom Holding Corp. Timur Turlov. “De acordo com as demonstrações financeiras da empresa, seus ativos triplicaram em 2020 para US$ 1,47 bilhão (US$ 453,5 milhões em 2019), o patrimônio quase dobrou para US$ 225,5 milhões (US$ 131,3 milhões, respectivamente), o lucro líquido saltou 10 vezes para US$ 42,3 milhões (US$ 4 milhões, respectivamente). ”

E assim por diante.

E do outro lado das barricadas estão todos aqueles que trabalham para toda esta alta sociedade por 300 dólares por mês (é aproximadamente assim que o salário médio no Cazaquistão é estimado), extraindo minerais para corporações “britânicas” e “cingapurianas” ou atender os concidadãos no setor de serviços, que também pertence a todos os mesmos da lista; ou aqueles que não encontraram trabalho em empresas de grande e médio porte, cujos ganhos só podiam ser adivinhados (acredita-se que seja ainda menor). Os trabalhadores, concentrados em torno das empresas, exigem garantias sociais (preços de serviços públicos mais baixos, assistência médica gratuita, salários mais altos etc.). Aqueles que nem são trabalhadores estão simplesmente tentando obter o seu próprio dinheiro de lojas e bancos através de vitrines quebradas e lojas saqueadas.

Considerando que os trabalhadores certamente serão demitidos assim que o calor diminuir, as ações destes não podem ser chamadas de irracionais ou injustas.

Centro de Almaty em 5 de janeiro; uma fotografia de Zhanabergen Talgat.


Uma Primavera Adiada por Trinta Anos

Novamente, de acordo com o podcast avtonom.org, “Trends of order and chaos,”

“As autoridades cazaques e o presidente Tokayev não confiavam em suas próprias estruturas policiais e governamentais. A polícia e o exército já haviam começado a se mover para o lado dos rebeldes, e era óbvio que qualquer um dos vários resultados era possível. Nessas circunstâncias, Tokayev decidiu pelo último extremo – chamar as forças repressivas dos países vizinhos. Isso foi suicídio político: na verdade, ele admitiu que estava em guerra com seu próprio povo e até com seu próprio aparato estatal”.

A situação no Cazaquistão escalou muito rapidamente – não apenas os protestos, mas também a brutalidade com que foram reprimidos. A luta nas ruas é uma consequência das maneiras como a paciência das pessoas no Cazaquistão vem sendo testada há décadas. A sociedade cazaque já viu brigas e tiroteios nas ruas antes – em 1986, quando o governo de Mikhail Gorbachev reprimiu uma revolta em Almaty, realizando um massacre,1 e em 2011, quando a polícia atirou em trabalhadores em greve em Zhanaozen, matando dezenas.

Quando surgiram as primeiras notícias de intervenção militar doméstica, isso não pareceu causar um grande revés para o levante. A luta não cessou então — pelo contrário, intensificou-se. Vimos vídeos de soldados desarmados no meio da multidão, acolhidos por mudar de lado.

Então a internet foi derrubada. O motivo oficial do apagão da internet foi “impedir que terroristas de vários países que estão lutando em Almaty se coordenassem com seus quartéis-generais”. Isso causou uma crucial falta de informação dos lugares onde a revolta estava ocorrendo, tornando mais fácil apresentar – ou deturpar – os eventos. Em uma época em que tudo é filmado, fotografado, carregado e compartilhado, cortar uma revolta social dos meios de comunicação serve para apagá-la da realidade, abrindo um espaço no qual as falsidades podem prosperar.

A polícia de choque filmando os combates no Cazaquistão de seu ponto de vista. A guerra de informação sempre ocorre em um campo de batalha irregular.

No entanto, um dos eventos mais importantes ocorreu à vista de todos: a intervenção do CSTO. Isso levantou muitas contradições ao mesmo tempo. Formalmente designado como “assistência de manutenção da paz da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO)”, inclui um contingente de até 200 soldados da Armênia e do Tadjiquistão, 500 da Bielorrússia do ditador Lukashenko (que recentemente reprimiu um levante do seu próprio povo), um contingente não especificado número de soldados quirguizes e 3.000 soldados da Rússia. É significativo que os pára-quedistas russos que foram transferidos para o Cazaquistão sejam comandados por Anatoliy Serdyukov, que tem experiência nas guerras da Chechênia, na anexação da Crimeia e na guerra na Síria. Podemos ver as atividades imperiais da Rússia em plena exibição aqui.

No Cazaquistão, o regime está se esforçando para permanecer no poder por todos os meios necessários, recorrendo ao convite às ditaduras vizinhas para invadir. Para as pessoas no Cazaquistão, isso deve significar a perda final de qualquer legitimidade que Tokayev possa ter tido aos seus olhos. Todos na região podem ver que a CSTO representa a unidade de seus governos contra seus povos.

De acordo com avtonom.org:

Um presidente que chama o povo de seu próprio país de “gangues terroristas” representa um ponto baixo mesmo para os padrões das “repúblicas” autoritárias pós-soviéticas.

Na verdade, trata-se de uma invasão de outro país à força por parte das autoridades que perderam a confiança do povo. Significaria a reprodução infindável do cenário “A Rússia é uma prisão de nações” e estaria no mesmo patamar que a repressão das revoluções húngaras em 1848 e 1956, com tanques nas ruas de Praga em 1968, e com a invasão de Afeganistão em 1979.

A carcaça queimada de um veículo militar em Almaty, fotografado em 7 de janeiro. Nenhum governo é invencível, nem mesmo o império mais poderoso.

De Zhanaozen a Almaty: lembrando os mortos

De Anarchist Fighter:

“A atual revolta no Cazaquistão começou com os protestos em Zhanaozen. A mesma cidade onde, em dezembro de 2011, as autoridades atiraram em trabalhadores do petróleo em greve. A tragédia em Zhanaozen deixou uma marca na cultura de protesto no Cazaquistão. As pessoas têm conservado a memória dos mortos. O dever dos vivos era continuar o trabalho dos caídos.

E em janeiro de 2022, Zhanaozen se levantou novamente. A primeira cidade do país, um exemplo para todas as outras. O motivo formal dos protestos foi o aumento dos preços do combustível e dos alimentos. Mas, como observou Mikhail Bakunin, a mera insatisfação com a situação material não é suficiente para a revolução, é necessária uma ideia mobilizadora. No Cazaquistão, uma dessas ideias foi a lealdade aos combatentes que morreram em 2011. Os trabalhadores que morreram então sob as balas nunca verão o mundo com que sonharam, mas a morte por causa de um sonho tornou-se um testamento para que os vivos continuem sua causa. E assim para os rebeldes do Cazaquistão não há como voltar agora.

A cultura rebelde do Cazaquistão tem muito a aprender. Nós também devemos guardar a memória dos mártires do movimento de libertação na Rússia e na Bielorrússia. Sobre Michael Zhlobitsky, Andrey Zeltzer, Roman Bondarenko e outros heróis. Eles morreram para nos tornar mais corajosos e mais fortes, e somos gratos a eles. Devemos contar como eles viveram e por que eles deram suas vidas. Como os eventos no Cazaquistão mostram, mártires caídos são capazes de levar as pessoas à revolta.”

The wreckage of revolt: Almaty after the uprising.


Entrevista: Testemunho ocular de anarquistas em Almaty

Para obter mais perspectiva sobre os eventos no Cazaquistão, contatamos duas anarcofeministas que testemunharam algumas das cenas da revolta em primeira mão. Elas não estavam na linha de frente dos confrontos, mas são conhecidas ativistas que participam de organizações feministas na cidade há anos,2 então elas têm a coisa mais próxima de um ponto de vista “neutro” sobre os eventos que poderíamos encontrar.

Feministas anarquistas em Almaty no Dia Internacional da Mulher, 8 de março de 2021.

Apresentem-se e diga qual a situação da qual você está falando.

Somos duas anarquistas do Cazaquistão, ambas ela/dela. Participamos de muitas atividades anarco-feministas e ecológicas de esquerda, libertação animal e veganas em Almaty nos últimos onze anos, mas não estamos tão ativas no momento.

Não posso indicar nenhum movimento anarquista no Cazaquistão no século 21. Houve algumas atividades clandestinas na década de 1990, mas, no momento, nada disso existe. Eu participava de um grupo marxista de esquerda: reuniões, grupo de leitura, algumas palestras públicas. Não sei o que os ex-membros que ficaram aqui estão fazendo agora. Não ouço nada sobre nenhum grupo de “esquerda” aqui.

Fui uma das organizadoras de um dos primeiros movimentos feministas aqui – Kazfem. Organizamos muitas atividades públicas e performances, publicamos uma revista feminista chamada Yudol’ e organizamos manifestações para o dia 8 de março [Dia] Internacional da Mulher].

Há um movimento liberal da juventude aqui chamado Oyan Kazakhstan (“Acorde, Cazaquistão”) que está ativo agora. Eles organizam reuniões públicas, apresentações, marchas e muitas vezes são perseguidos pela polícia. Tudo começou após a ação com faixas que Beibarys Tolymbekov e Asya Tulesova realizaram na maratona da cidade em 2019.3 Eles foram presos por 15 dias e chamou muita atenção, especialmente nas mídias sociais, o que não havia acontecido antes. Existe uma teoria da conspiração de que todos esses ativistas são pró-governo, porque ninguém está preso agora, mas não acho que seja verdade. Conheço muitos deles pessoalmente. Eles também apoiam atividades feministas e LGBTQ. Do lado oposto – principalmente haters na internet e em alguns meios de comunicação do governo – as pessoas afirmam que tudo isso é obra do “Ocidente” (Europa e Estados Unidos).

O Cazaquistão é um país autoritário. Tivemos o mesmo presidente [Nursultan Nazarbayev] por 28 anos, e o novo [Kassym-Jomart Tokayev] é apenas um fantoche. Mas quando o primeiro presidente se demitiu, as pessoas começaram a pensar em mudança. O culto à personalidade em torno de Nursultan Nazarbayev não desapareceu depois que ele se demitiu. A capital, Astana, foi renomeada “Nursultan”, o que causou muitos protestos. Nos últimos anos, a situação econômica vem piorando, principalmente após a pandemia, inflação muito alta, corrupção, etc. Além disso, tem havido muita venda e aluguel de nossas terras para a China e outros países.

A situação sempre foi assim – mas há dez anos, ou mesmo cinco anos, mais pessoas eram leais ao presidente e temiam a “desestabilização”. Naquela época, havia uma esperança de que nós [Cazaquistão] estivéssemos nos “desenvolvendo”, que as coisas melhorariam em breve.

Mesmo na época dos eventos em Zhanaozen em 2011, quando os trabalhadores que protestavam foram baleados, havia muito pouco apoio de Almaty. Muitas pessoas pensaram que o que aconteceu lá era correto.

Antes, se havia algum protesto, era organizado e apoiado pela geração mais velha, por trabalhadores e pessoas das regiões, os auls (aldeias), geralmente liderados pelo obscuro líder oposto Mukhtar Oblyazov. Mas nos últimos três anos, os jovens da classe média urbana tornaram-se ativistas políticos. Eram principalmente pessoas de Almaty, mas também houve apoio em outras cidades.

A propósito, acho que os problemas ecológicos em Almaty – onde temos níveis extremamente altos de poluição e piora a cada ano – são o grande motivo do protesto dos jovens aqui. Junto com o desenvolvimento das mídias sociais, é claro.

Centro de Almaty, 5 de janeiro.

Conte-nos o que você experimentou em Almaty na semana passada.

Logo após o Ano Novo, começaram a chegar notícias sobre uma revolta dos trabalhadores em Zhanaozen. O protesto foi pacífico, mas as demandas foram bastante radicais – desde preços mais baixos da gasolina até a renúncia do governo. Os protestos também começaram em outras cidades. Soube-se que haveria ações de solidariedade em Almaty no dia 4 de janeiro, mas não tive informações precisas.

No caminho para casa naquele dia, soube de protestos em diferentes partes da cidade e das prisões de ativistas do [movimento liberal juvenil mencionado acima] Oyan Kazakhstan. Moro um pouco fora da cidade, nas montanhas e, já em casa, ficou claro que algo sério estava acontecendo. À noite, todas as conexões de internet ficaram offline. Eu não sabia para onde ir e se eu poderia voltar.

Sobre o que aconteceu na cidade durante esse tempo, meu camarada Daniyar Moldabekov, jornalista político, escreveu:

Quando os manifestantes se aproximaram da praça, a polícia começou a lançar bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. Eu e milhares de outros sufocamos, nossos olhos e rostos ardiam, nos sentíamos mal, tossíamos sem parar. É um milagre que eu não desmaiei. Eles devem ter disparado mais de uma centena de granadas de efeito moral entre 23h e 4h, que foi quando meus colegas tiveram que me levar para casa. Eu ainda podia ouvir o barulho do meu apartamento.

Cerca de uma hora depois que a multidão chegou à Praça da República, eles desceram para a Rua Abai. Lá eles enfrentaram um veículo blindado que vinha em sua direção. Um caminhão passou transportando cidadãos acenando com bandeiras do Cazaquistão. Alguns deles seguravam escudos que pareciam ter roubado da tropa de choque.

As pessoas ouviram explosões a noite toda. Eu me recusei a acreditar. Pela manhã, a notícia foi dada por telefone. Liguei para todo mundo o dia todo, ouvi falar das vítimas, os ativistas foram soltos. Só foi possível ficar online na casa de alguns amigos. O prédio Akimat (a prefeitura) estava sendo ocupado. Todo mundo estava tentando nos convencer a ficar em casa. Especulando que os protestos poderiam ter um caráter nacionalista, algumas pessoas começaram a ter medo (sou etnicamente russa no Cazaquistão).

Não havia informações disponíveis sobre quem estava na praça ou na cidade naquele momento. Minha amiga e eu decidimos ir ver por nós mesmas.

Centro de Almaty em 5 de janeiro.

A cidade estava meio vazia. Carros com bandeiras do Cazaquistão circulavam pelas ruas, gritando algo alegre. Tudo estava fechado. Nas portas, havia placas que diziam “estamos com o povo”. Um clima de emoção. À medida que nos aproximávamos da praça, havia mais grupos de rapazes. Eu vi uma fita de ombro (que indica patente) da polícia caída na estrada. Havia pessoas com paus se encontrando. Tornou-se um pouco assustador, mas ninguém era agressivo. No monumento aos acontecimentos de 1986 (a revolta contra o regime soviético), encontramos manifestantes com escudos policiais. Não havia um único policial ou soldado à vista.

Centro de Almaty em 5 de janeiro. A placa na porta diz “Estamos com o povo”.

Então vimos o Akimat [prefeitura] queimando. Não podíamos acreditar em nossos olhos. As pessoas estavam cuidando de fogueiras. Todo mundo estava calmo. Eles quebraram as portas do prédio em frente ao Akimat. Havia canais de TV e outros serviços governamentais. Homens vieram até nós novamente: “Por que você veio?” (Eles queriam dizer — por que você veio, já que você é etnicamente russa?).

“Essa cidade e esse país são tão meus quanto de vcês.”, respondi. Eles nos cumprimentaram alegremente. Não sentimos nenhuma agressão deles.

Oferecemos chá quente aos manifestantes. O homem nos disse que estava nos protestos desde o início – que tudo começou pacificamente, até que as autoridades começaram a detonar bombas e usar violência.

“Agora”, disse ele, “eles estão atirando em combatentes”. Os guardas permaneceram apenas perto do próprio edifício Akimat.

Ele e outros homens lá viram pessoas baleadas na cabeça. Eles chamaram táxis e colocaram os feridos nos carros para levá-los ao hospital. Ele nos disse que planejavam ocupar o aeroporto, para que os militares russos não pudessem desembarcar lá.

Muitos dos altos escalões burgueses do governo e empresários já haviam deixado o país em voos privados. Havia rumores de que N. Nazarbaev também havia deixado o país.

Nenhuma das pessoas que vimos na praça parecia “saqueadores” [sic].

Eles queriam que o governo renunciasse. Eles não estavam cumprindo ordens; ninguém estava controlando eles. Esta foi uma revolta trabalhista nacional. Ninguém estava com medo de morrer, mas não vimos nenhuma raiva. Eles nos mostraram ferimentos de balas de borracha e nos avisaram que em breve haveria tiroteio grave, que seria melhor irmos embora.

O som de explosões e tiros tornou-se mais próximo e mais frequente. Nós saímos. Um homem nos deu uma carona em seu carro. Todos esses dias, as pessoas mostraram solidariedade umas às outras.

Meus amigos e eu decidimos ficar juntos na minha casa. Estávamos animados. Isso foi antes que surgissem notícias sobre destruição, saques e morte de civis. À meia-noite, entre 5 e 6 de janeiro, todas as conexões de internet foram encerradas. Durante quatro dias, ficamos isolados; só podíamos fazer e receber chamadas e elas não funcionavam bem.

Naquela noite, toda a cidade ficou sem todos os serviços, incluindo o corpo de bombeiros e os serviços médicos. Os incêndios foram apagados por voluntários. Além disso, alguns manifestantes e voluntários tentaram parar os “ladrões”.4

Em 7 de janeiro, algumas lojas e caixas eletrônicos distantes do centro da cidade ainda estavam funcionando. Naquela parte da cidade, quase tudo estava vazio, exceto os prédios governamentais queimados ao redor da praça. Alguns serviços estavam funcionando lá. No dia anterior, fora possível entrar nos prédios; ninguém vigiava. Desta vez, tiramos algumas fotos e então houve um tiro próximo e saímos do local.

Na noite de 9 de janeiro, tornou-se possível obter uma conexão à Internet com serviços de proxy. Uma conexão móvel ainda não estava disponível. Na manhã de 10 de janeiro, a conexão funcionou em todos os lugares, mas apenas até as 13h e depois das 17h30 às 19h30.

Centro de Almaty em 5 de janeiro.

Tem havido muita conversa de fora do Cazaquistão sobre quem está “por trás” dos protestos. Essas acusações têm alguma credibilidade? Também vimos algumas reportagens afirmando que os confrontos entre facções rivais dentro da estrutura de poder também estão contribuindo para a situação. Quanto você acha que o fundamentalismo islâmico está envolvido nesses eventos?

O presidente Tokaev ainda governa, apesar dos rumores sobre sua aposentadoria. Agora, os canais de TV e a mídia do governo estão espalhando tanta desinformação e propaganda. É muito cedo para tirar conclusões, mas algumas coisas são claras.

Tudo começou como uma revolta popular. Sim, eles queimaram Akimat, mas ninguém os liderou. Eles só queriam que o antigo regime acabasse. Eles não eram “criminosos” [sic].

Depois que começou, algumas outras forças apareceram. Não sabemos quem eram. Mas é verdade que eles foram organizados. Mas por quem? Agora há muitos rumores. Alguns meios de comunicação oficiais dizem que eles são do [vizinho] Quirguistão, onde houve várias revoluções desde a independência [como o Cazaquistão, o Quirguistão se tornou independente quando a União Soviética se separou em 1991]. Esses meios de comunicação também estão divulgando relatos sobre o Talibã ou jihadistas. Pessoas que conheço pessoalmente disseram que viram pessoas nas ruas que “se pareciam com eles” [sic].

Aqui no Cazaquistão, não vi nenhuma conversa sobre a CIA [a Agência Central de Inteligência do governo dos Estados Unidos]. Acho que é propaganda russa.

O ex-assessor do presidente vem fazendo denúncias sobre uma conspiração dentro das estruturas governamentais, alegando que há vários anos havia “campos de treinamento” nas montanhas e o Comitê de Segurança Nacional estava escondendo essa informação. Ele e afirmou: “Tenho informações exclusivas de que, por exemplo, 40 minutos antes do ataque ao aeroporto, foi dada uma ordem para remover completamente o cordão e os guardas”.

Almaty, 7 de janeiro.

O que você pode dizer sobre a dinâmica interna da revolta?

Todo mundo fora do Cazaquistão está tentando analisar o que está acontecendo e é muito difícil fazer isso sem contexto, e quem está dentro do país não pode fazer isso por falta de informações completas. Acho que nem nós, os moradores deste país, ainda não vamos entender o que aconteceu. Além do fato de que não há conexão estável com a internet agora, e que antes não havia sequer uma conexão de telefone celular, todos os canais de notícias são severamente censurados e isso só vai piorar.

Não vou descrever as teorias que estão circulando agora, mas todas elas dizem respeito a diferentes lutas de poder entre o clã Nazarbayev e outros que buscam o poder — por exemplo, há uma teoria de que Tokayev, com a ajuda dos militares russos, está garantindo sua posição no poder.

O assustador de tudo isso é que dezenas de milhares de pessoas estavam envolvidas no jogo e suas tentativas bem-intencionadas de mudar as condições sociais e políticas deste país para melhor, para o bem de todos, agora estão sendo usadas por algumas pessoas dividir os recursos deste país entre si de uma nova maneira. Sim, tudo começou com as demandas econômicas dos trabalhadores no oeste do Cazaquistão, que protestavam contra o forte aumento dos preços do combustível. Então as demandas se tornaram políticas: a renúncia do governo e do presidente, a eleição de akims (prefeitos) e uma república parlamentar. Algumas das demandas foram atendidas, mas não de uma só vez, e quando foram ignoradas, uma onda de protesto e solidariedade se espalhou por todas as cidades do Cazaquistão, de modo que de fora parecia uma grande explosão revolucionária, que em nosso país não ocorreu ao longo de trinta anos de regime autoritário.

Não podemos dizer nada com certeza agora, exceto uma coisa – esse protesto não teve um líder público, e os distúrbios de rua e as ocupações de prédios administrativos não tiveram demandas expressas. Mas houve assassinatos e um grande número de vítimas entre a população, que sofreu primeiro em batalhas com a polícia, depois uns com os outros nas ruas, de onde a polícia fugiu, e depois os civis fuzilados nas ruas pelas forças armadas do Cazaquistão e do CSTO (embora nos seja dito que eles apenas protegem as instalações estatais agora).

Os meios de comunicação de massa que foram autorizados a continuar funcionando começaram a nos falar sobre radicais e islâmicos, usando a imagem do inimigo de fora. Antes disso, nos primeiros dias dos protestos, houve um discurso pedindo “diálogo pacífico com os manifestantes” – e um dia depois já havia ordem de atirar para matar (no discurso do presidente Tokayev). Após a entrada das tropas do CSTO e dois dias de tiroteios constantes nas ruas, Tokayev equiparou manifestantes a terroristas, bem como ativistas e defensores dos direitos humanos, e a mídia independente em suas palavras tornou-se uma ameaça à estabilidade. O discurso do Estado está em constante mudança no processo dessa busca por um inimigo: ontem esse inimigo era supostos desempregados subornados do Quirguistão, hoje já são radicais do Afeganistão. Todos nós esperamos que amanhã não sejam os ativistas que defenderam as reformas políticas no Cazaquistão nos últimos três anos e saíram aos comícios.

Centro de Almaty em 5 de janeiro.

O que você pode nos dizer sobre a repressão?

O músico quirguiz Vicram Ruzakhunov foi preso e torturado pelas autoridades cazaques como “terrorista” e obrigado a gravar um vídeo e “confessar”. Agora ele está livre.

O jornalista independente local Lukpan Akhmediyarov foi preso. Outro jornalista independente, Makhambet Abjan, enviou uma mensagem dizendo que em 5 de janeiro a polícia foi ao seu apartamento; agora ele está desaparecido. Meus amigos e muitas outras pessoas nas redes sociais relatam que seus parentes e amigos também estão desaparecidos.

As autoridades já confirmaram a morte de centenas de vítimas, incluindo duas crianças. Ativistas sindicalistas estão desaparecidos – incluindo Kuspan Kosshigulov, Takhir Erdanov e Amin Eleusinov e seus parentes.

Em Almaty, jornalistas do Canal Dozhd’ (Телеканал Дождь), que tentaram filmar no necrotério municipal, foram alvejados (não foram feridos).

No dia 6 de janeiro, voluntários vieram à praça. Alguns ativistas exibiram uma faixa que dizia “Não somos terroristas”. A polícia atirou contra eles, matando pelo menos um.

Centro de Almaty em 5 de janeiro; uma fotografia de Zhanabergen Talgat.

Como você acha que as tropas russas entrando no Cazaquistão mudarão a situação a longo prazo?

A entrada de tropas russas é muito preocupante. Na situação de uma guerra com a Ucrânia, poderíamos imaginar todos os piores cenários. Todos que conheço concordam que isso é inadequado e que podemos chamar isso de ocupação.

Pessoalmente, temo que as tropas russas que entram neste país consolidem politicamente a já forte influência da Rússia no Cazaquistão, e o país se torne como a Rússia que conhecemos agora, com ativistas torturados e casos forjados. Nossa oposição política já está completamente silenciada e a população do país completamente intimidada. Considerando que este é o segundo tiroteio durante os protestos (2011 e 2022), e na história do Cazaquistão também houve uma repressão brutal de uma revolta sob a URSS em 1986, e as informações sobre o número de pessoas mortas naquela época ainda são classificadas… então não há esperança de que em um futuro próximo saberemos o que realmente aconteceu e quantas pessoas foram mortas e feridas. A contagem provavelmente vai para milhares de pessoas.

O que você acha que vai acontecer depois?

Agora é muito cedo para imaginar o resultado, em uma situação de guerra de informação, propaganda e isolamento. Não sou especialista em política.

Com certeza, a repressão vai se intensificar agora. A internet e todos os meios de comunicação serão censurados. Agora o governo tenta fazer uma “boa cara”, como se fossem os salvadores que nos salvaram dos terroristas. Eu não tenho certeza que isso vai funcionar. Mas, por enquanto, acho que vai ser tranquilo. As pessoas estão muito assustadas e chocadas.

Existe alguma coisa que as pessoas fora do Cazaquistão possam fazer para apoiar você ou outras pessoas lá?

Espalhar informações, é claro. Talvez em breve haja mais repressão e alguns ativistas precisarão de ajuda para deixar o país.

O suporte mais importante é o informativo. Em 2019, após a eleição presidencial, fomos todos presos nos comícios e os únicos que escreveram sobre isso foram a mídia estrangeira e a mídia independente do Cazaquistão (que são muito poucas e os sites são frequentemente bloqueados). Agora é muito importante que o sangrento janeiro no Cazaquistão não tenha sido apenas um belo quadro revolucionário como escrevem muitas publicações de esquerda, mas também que não seja lembrado como um ato terrorista organizado de fora, como dizem todas as fontes oficiais de diferentes países.


Leitura Adicional


January 6: 6 de janeiro: Uma visão de Almaty na fumaça, no dia seguinte.

  1. De 17 a 19 de dezembro de 1986, houve protestos em Almaty em resposta a Mikhail Gorbachev, então secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, demitindo o antigo primeiro secretário do Partido Comunista do Cazaquistão e substituindo-o com um funcionário da Rússia. (Gorbachev mais tarde afirmou que estava tentando impedir que Nursultan Nazarbayev concentrasse muito poder em suas mãos; Nazarbayev passou a governar o Cazaquistão por 28 anos.) Em 1986, como em 2022, os protestos terminaram em um massacre nas mãos das forças estatais. Em 1986, como em 2022, espalharam-se rumores de que os manifestantes foram subornados com vodka ou desviados por meio de panfletos. 

  2. Kazfem, sem dúvida o primeiro movimento feminista no Cazaquistão desde o colapso da União Soviética, publica a revista feminista Yudol’ e organiza manifestações para 8 de março, Dia Internacional da Mulher. 

  3. Em 21 de abril, Asya Tulesova e Beibarys Tolymbekov foram presas por 15 dias, acusados ​​de violar a lei do Cazaquistão sobre a assembleia pública depois de pendurar uma faixa ao longo da rota da maratona em Almaty, onde se lia “Você não pode fugir da verdade” – um comentário sobre o eleições presidenciais. 

  4. Essa reportagem explora esta questão, embora a partir de uma posição partidária.